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Cheiro
Ontem pus meu corpo cansado na cama com a certeza do sono. Escolhi a melhor posição, fechei meus olhos vermelhos e senti o teu cheiro. Cheirei o lençol, abracei o travesseiro, tirei as cobertas. Nada. Senti minhas roupas, meu cabelo, lavei o meu rosto. Nada. O cheiro parecia tomar o quarto, o corredor, a casa. Parei nas lembranças. Perguntei aos mecanismos psíquicos, indaguei a loucura. Sem entender como, me restava buscar o por que. Nada. Em agonia, agora era tua presença. Tua figura incólume, tua pertubação sem essência. Os poucos anos contigo se expandiram em terror e alívio. O fim sempre esteve longe. Horas de análise em um corpo em transe. Inércia motora, vida imaginária. Roteiro escrito com lápis de cera, personagens criados com massa de modelar. Anos de solidão em casa cheia. Mais uma ficção do quarto secreto, do cinza dos livros, das promessas em pó. Na gentileza brutal dos teus braços, meus olhos fechados em cada página. Ativação do sublime pelo caminho dos pensamentos para resgatar matéria em desespero. Pedaços violados, perdidos no afã por serem esquecidos. Folhas de outono para o inverno passado. Partida desejada e comemorada em culpa. Culpa paga à juros altos de uma dívida tua. Perecestes como eu. Pedaço a pedaço destruído aos poucos. Os teus no corpo, os meus na alma. Ansiei pelo teu colo, pedi a tua mão. Pervertestes meu desejo. Vias paraíso e me deixavas o grilhão. Estais a milhas de distância. Nessa publicidade esvaziada, a decomposição das formas de sociabilidade. Intimismo progressivo, equilíbrio conveniente. Infame promiscuidade sagrada. Por muito desativei meu aparelho pulsatório humano. Mas não terminei ainda. Todas as manifestações são fundamentais, todo bem espelho do mal. Problematizo a moral do desejo mas não perco o referencial. Consciência de si sem ansiedade, docilidade sem submissão. Transcendam o conhecimento. Quem mostra limite e finitude ao indivíduo? Eu só queria uma vida simples. Prescrições e procrastinações. Prepare-se que tudo está para vir. O ontem só é morto para quem não vê futuro. Desafios constantes aos modos de existência. Vontade de alteridade e uniformidade. Paradoxos sutis nas demarcações do ser. Corpos almejados, sefs possíveis. Práticas de si no conformismo e egoísmo do seu outro. Meus velhos valores para tua quase moral. Virei perita no processo reflexivo, me tornei censura para retóricas de risco. Fracasso do ato, sobrevivência do fato. Marcas da aversão, máscaras da aparência. Maquiados os sinais, o corpo é saudável. O cuidado é auto. Compensações aos deslocamentos, voltas ao mesmo lugar. Dores universais. Teus tapas doem como meus cortes. Sentimentos ambivalentes para contrários únicos. Fardos são trocados em uma soma sempre de zero. Erguem-se defesas, mas fronteiras são inseguras por definição. Nos usamos em um vício decaído, eu inocente e tu perdido. Abrem-se as portas, da sombra à luz. Partistes para a existência livre, mas ressoas no meu novo ser que não te ouve mais. Causa mortis? Acrasia. Todos donos do próprio destino em contato ou não com a divindade. Achem os supérfluos, os indispensáveis se perderam na curva de normalidade e o distúrbio virou padrão. Atirada ao mundo, me agarro a imaginação. Cansei de me roubar. Não te quero mas me preciso de volta. Queria lembrar com prazer do teu cheiro.