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Anjo sem halo
Em que centésima fila de farelo branco de neve a minha narina repousou para te trazer a vida? Crua. Tua carne não me amedronta. Sei, mesmo inteira, tenho tão somente teus pedaços. E gosto. Pouco me parece tanto. Último gole de vinho das várias garrafas degustadas em atos de turbulência. Taças intactas, corpos imóveis, desejos revirados. Pobre da moral, vítima de nós duas. Tudo voltará ao seu lugar, delírio é reversível. Me torno lúcida aos poucos pelas palavras na tua língua, ou seria pela tua língua em minhas palavras? Nitidez esquisita. Espasmos reais e vapores que se singularizam. Sou teu segredo sujo, és o meu erro inculto. Qual o próximo passo? Te fazer o jantar? Talvez, hás de responder, como uma dama de luxo dos antigos cabarés. Essa voz doce e esse corpo lascivo! Te afasta de mim, tépido poente. Te faço mínima e te quero mais, mas não ouses dizer ser minha. Não tenho nada, tudo faz parte de um grande acordo de empréstimo. Te estimo e te mimo, te preparo para ir ao amanhecer. Feliz, mas desconfortável. Como se o rio corresse ao contrário. Trabalhas o teu poder enquanto eu perco o sangue. Quem ganha, quem perde? É um jogo vazio. Ganha o instante e perde a eternidade. É hora de ir e teu corpo me chama, é hora de ir e tua boca passeia na minha. Minhas mãos desnudam tua pele, minha sensibilidade toca a tua... O perigo é iminente, das alturas a noite nos acoberta. Estamos no limiar. Subir no muro é metáfora. Já saltamos, falta apenas escolher o local da queda. Saber da busca só faz ter certeza da distância. Reconhecer o vazio é entender a inexistência do amor. Não precisas definir a tua cor, o arco luminoso continuará no mesmo lugar. Cura, corta, colore, escolhe, chora e põe a fora as faces que te faz ser. Verdades não são apenas para ser ditas, são para ser vividas. Não trago cansaço para teu tempo e espaço, marco compasso nessa sintonia sem pressa. Sou o gesto bravo que não se ensaia, o breve. Gota de cristal em mar de vidro. Não vai embora, não ainda. Brisa suave há de virar tarde purgatório? Eu ei de rogar clemência, por ser outro e não ousar ser um. De certo não sei sair. Desígnios torpes de um destino devorado em pó. Sopra! Logo terás nova conjuntura desenhada pelo ar que te mantém a vida. Em dias de sol também é preciso brilhar. Eu estou no ciclo das águas, abismada com a imensidão, esperando subir, me unir, cair e me dissolver no humano até chegar a lama que cobre o teu chão. Próxima parada? Reciclagem. Águas turvas são para as sombras cuja escolha foi não existir. Não me absorves, sou fogueira de mil sóis. Diante dos meus olhos teu feitiço há de acabar, mas segurarei a tua mão. Memória inoxidável. Sabor chocolate, delícia intoxicante. Te bebo, me embriago, assino e renuncio. Tua crença na santidade do desejo me tortura, sou anjo sem halo. Minha divindade é duvidosa e minha carne demasiado perecível.